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Vencedor do mês de Dezembro: | ||||||
O homem que sorria para as folhas |
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O homem dobrou o tronco, apanhou uma folha do chão e ergueu-a em frente aos olhos. Observou-a por um momento e sorriu. Um sorriso aberto, franco, como se visse na folha algo de extraordinário, algo que o fazia imensamente feliz. Ao fim de uns minutos, deixou-a cair, baixou-se e apanhou outra. Voltou a sorrir. Havia meia hora que eu observava esta peculiar rotina. Talvez fosse um biólogo ou algum estudioso da natureza mas a verdade é que a sua indumentária sugeria... outra coisa. Era negro, embora a pele não fosse muito escura; talvez fosse mulato, ou talvez nem fosse africano. Tinha uma barba comprida e um cabelo enorme, todo encarapinhado, que não devia ter visto a água desde o dilúvio original. A testa estava cingida por um lenço de cor incerta do qual o cabelo emergia em cascatas lembrando uma palmeira. Para cobrir o corpo, apenas umas calças pretas cobertas de nódoas e uma gabardina rasgada. Os pés desapareciam numa confusão de tiras de tecido, cordéis e fita isoladora. Estávamos os dois num jardim público à sombra de um plátano, se não milenar, certamente secular; ele sentado num banco, eu noutro do lado oposto; ele a brincar com as folhas, eu a tentar ler um livro. Gosto de vir aqui. É um jardim pequeno, meia dúzia de bancos de madeira, muitas árvores diferentes; mas, principalmente, fica a dois passos da universidade onde lecciono, o que me permite aproveitar os intervalos entre as aulas para saborear um pouco de paz e pôr as leituras em dia. Só que hoje não conseguia passar da mesma página. Tentava fixar os olhos no livro e eles acabavam por derivar para o homem. Não era tanto o que ele fazia com as folhas, era sobretudo a sua expressão que me fascinava; uma expressão radiante, como uma criança que descobre um brinquedo novo. Acabei por encolher os ombros. Mais um pobre coitado que anda a arrastar a sua miséria pelos bancos dos jardins. Uns falam sozinhos, outros com os postes, este brinca com as folhas. |
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A primeira pessoa que vi ao chegar à universidade foi o Frederico. Seria um feito não ver o Professor Frederico Horta e Costa. Cento e cinquenta quilos repartidos por um metro e setenta, dizer que era gordo seria um eufemismo apenas justificado pela grande estima que sentia por ele. Frederico não era gordo, era enorme. Não só em volume; era enorme em alegria de viver, em dedicação ao seus alunos, em inteligência, em coração, em... exuberância também. Sim, a discrição não era o seu forte. Começava nas anedotas “picantes” que a sua voz de barítono fazia ecoar pelos corredores da universidade e acabava no seu vestuário. Nunca o vi de gravata, usava laços “papillon” de cores garridas a condizer com os suspensórios e com o lenço no bolso da camisa. Para completar o quadro, não tinha um único pêlo na cabeça. Piscou-me o olho. |
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No dia seguinte sentei-me no mesmo banco da véspera com a firme determinação de passar para além da página doze. Poucos minutos depois apareceu o homem das folhas. Desta vez sentou-se ao meu lado. Trazia uma guitarra em mau estado que encostou cuidadosamente ao banco. Apanhou uma folha que estava caída no sítio onde se ia sentar e, depois de olhar para ela, esboçou um largo sorriso. Enfiei ainda mais a cabeça no livro.
Já tinha lido os dois primeiros capítulos quando ele me abordou. Olhei atentamente para ele para ver se me estava a gozar. Parecia estar a falar a sério. Não respondi. Ele deve ter lido o meu pensamento pois respondeu: Parou novamente embasbacado. Pareceu ficar envergonhado. Pensei que tinha arrumado o assunto. Voltei ao meu livro. O homem olhou para a guitarra, tocou uma corda, depois outra, tentou fazer um acorde com as poucas cordas que restavam. De repente começou a cantar. Era um casamento incestuoso entre Samba e Reggae. As cordas faziam um som horripilante que ele tentava compensar batendo com a mão na caixa em jeito de percussão. Até não cantava mal. Esperei que acabasse, abri a carteira e dei-lhe uma nota. Os olhos dele brilharam, não sei se pela nota ou se pelo elogio. Agradeceu e afastou-se levando a guitarra ao ombro. Ao sair do parque, apanhou uma folha, olhou para ela e riu-se alto. |
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A semana seguinte foi caótica e não tive um segundo para respirar. Mal as coisa acalmaram, voltei ao parque. Ele já lá estava. Mal me viu acenou e fui-me sentar ao seu lado. - Tenho uma música nova – anunciou orgulhosamente. - Calha bem porque eu tenho uma prenda para si. E entreguei-lhe o pequeno embrulho que trazia nas mãos. A cara dele, só visto! Desfez o laço e desembrulhou o presente com as mãos a tremer. Era um conjunto de cordas para guitarra acústica. Estendeu-me a mão aberta num gesto tão franco como o seu sorriso. Quando acabou, tirei a carteira do bolso. Ele interrompeu-me o gesto. Baixou a voz. |
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A partir daí, sempre que ia ao parque levava qualquer coisa para o Filé. Um dia dei-lhe uns ténis que andavam lá por casa. Noutro umas calças. Por vezes levava umas sandes, duas latas de cerveja e almoçávamos juntos. Ele fazia questão em pagar tudo com músicas. Como o seu repertório de originais era limitado, passou para a música brasileira e, em seguida, para os Beatles. Um dia voltei a falar-lhe das folhas. Desta vez abriu-se comigo. - Mas vês pessoas em todas as folhas? – perguntei. |
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E assim se passavam os meus intervalos. Dois tolos a rirem-se das folhas. Várias vezes rezei para que não aparecesse alguém conhecido, sobretudo algum dos meus alunos. Até que um dia a tragédia fez-se anunciar na forma de um toque de telemóvel.
Olhei para o visor. Era a secretária do departamento. Corri para o hospital. O Frederico estava nos cuidados intensivos. Não me deixaram vê-lo. Os médicos não pareciam muito optimistas. Os dois dias seguintes foram iguais. Aulas, hospital. Hospital, aulas. Paredes brancas. Cheiro a desinfectante. Corredores intermináveis. Salas de espera. Familiares e alunos em choro. E, na sexta-feira, um raio de sol. O telefone tocou logo de manhã. O Frederico tinha acabado de sair dos cuidados intensivos. Os médicos pensavam dar-lhe alta para a semana. Só consegui ir ao hospital na hora de almoço. A enfermeira que me recebeu era bem bonita. Segui as suas pernas por uma série de corredores, tentando olhar em frente e não para baixo. Deixou-me à porta do quarto avisando-me que só tinha cinco minutos. Para quem tinha estado à beira da morte, o Frederico estava com boa cara. A cara dele ficou séria. Nunca o tinha visto tão sério. Pousou a mão em cima da minha. Nessa tarde não consegui concentrar-me nas aulas e os alunos chamaram-me várias vezes a atenção para as pequenas incongruências que ia dizendo. Acabei por deixá-los sair mais cedo e fui para o parque. Agarrei na folha e comecei-me a rir. Ri tanto que me vieram as lágrimas aos olhos. Não que eu visse alguma coisa na folha, eram os nervos, uma semana inteira de tensão a esvair-se em gargalhadas. O meu sorriso tinha amarelado. Nesse momento o telemóvel tocou e demos um salto. Olhámos um para o outro. Nenhum de nós se mexeu. Olhei para o Filé. Estava lívido. Largou a folha como se esta queimasse. Já nenhum de nós se ria. |
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Continuo a ir ao parque todos os dias, mas nunca mais vi o Filé; não faço ideia o que foi feito dele. Quanto a mim, as pessoas dizem que mudei. Algumas dizem que agora tenho um andar esquisito. Não compreendem, que se ando assim, de uma forma hesitante, é porque evito cuidadosamente pisar as folhas caídas nos passeios. | ||||||
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