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Vencedor do mês de Novembro: |
O Twist |
Era alta e magra, de cabelos claros e curtos, penteados em permanente - coisa pouco comum, até então, naquela pequena aldeia perdida entre as serras da Beira. Chegou de improviso, no meio de uma tarde quente e poeirenta, como criada da família de um tio meu que, todos os anos, no Verão, de Lisboa ali vinha passar as férias e fazer a vindima. E foi assim que a vi chegar: esticando para fora do carro as pernas longilíneas e nervosas, que uma saia plissada e de roda deixava à vista, logo abaixo dos joelhos. Não demorou a tornar-se conhecida entre a vizinhança; fosse pela forma como se vestia, fosse pelo jeito descontraído e desinibido de se comportar, ambos tão em contraste com a feminilidade sombria e austera das mulheres do lugar. Era bonita e sabia-o; o sorriso fácil não escondia a satisfação que lhe causavam os olhares de admiração que, à socapa, os homens lhe dirigiam e que desajeitadamente disfarçavam, ao verem-se descobertos. Quando ela passava era inevitável que entre eles se estabelecesse uma silenciosa troca de sinais, secreta linguagem de iniciados em algum saber a mim interdito, de olhos semicerrados e de cabeças em lento balançar de assentimento, e que eu via com olhos cúmplices e curiosos. Naquele tempo, o rádio, mesmo a pilhas, era coisa rara: na sede do concelho havia alguns nas casas de um ou outro doutor mais abastado. Mas, suprema das maravilhas, o meu tio tinha um! Certa tarde de domingo, começo da noite, vieram à minha casa a Odete e a sua jovem patroa e minha prima, a Teca, neta do meu tio. Trouxeram o rádio, para que a minha família e mais alguns vizinhos, especialmente convidados para a ocasião, pudessem desfrutar, por algum tempo, das maravilhosas e intrigantes invenções da moderna tecnologia. E lá ficamos, à volta daquela pequena caixa barulhenta, numa espécie de êxtase embasbacado, a ouvir as notícias de um mundo imenso e desconhecido. Depois veio a música: muita música! E como eram diferentes essas músicas das modas a que estávamos habituados: das desgarradas, dos viras valseados e dos fadinhos, em que campeava a concertina do Zé Maria. Alguém chamou à porta: era o Artur, um rapaz alto e bem apessoado, vindo há pouco lá dos lados de Tondela, e que recém casara com a filha do Simões. Viera trazer algum recado do sogro para o meu pai e por ali foi ficando também, atraído não sei se pelo rádio, se pela conversa com as raparigas. Então, tudo aconteceu muito rapidamente: uma música estridente, tocada num ritmo rápido, por instrumentos de uma sonoridade estranha que acompanhavam uma voz gutural e que cantava numa língua desconhecida. Como que impelida por uma mola, a Odete pulou para o meio da sala, esticando e encolhendo os braços, alternadamente, ao sabor da música, meneando as ancas, girando para a esquerda e para a direita, ora num pé, ora no outro. De imediato, o Artur seguiu-lhe o exemplo e postou-se em frente a ela, imitando-lhe os trejeitos. Fora os dois bailarinos e a prima Teca, todos os demais estávamos boquiabertos e de respiração suspensa. A Teca explicou: E todos nós assentimos com um ah! de admiração, perplexos pelo inusitado da cena e pela destreza dos dançarinos, que continuavam girando, exercitando equilíbrios instáveis. Agora, além dos movimentos giratórios, apoiados apenas numa das pernas esticavam a outra e dobravam aquela em que se apoiavam, até quase tocarem o chão, sem perder o ritmo, numa série de volteios e acrobacias verdadeiramente estonteantes e improváveis. Os assistentes, mudos de espanto, continuavam acompanhando tudo com ar deslumbrado; e eu silenciosamente repetia para mim mesmo: E a cada vez que se abaixava, a Odete deixava à mostra boa parte das suas longas e belas pernas. E à medida que a dança se desenrolava, comecei a perceber que o que até ali era um misto de deslumbramento e de admiração, rapidamente se transformava, entre a assistência feminina, num sentimento de constrangimento e animosidade bem expresso nas caras de desaprovação que não faziam questão de esconder. Comecei a ficar inquieto; não atinava com os motivos de tão súbita mudança. Afinal, como dissera a Teca, era apenas o twist. Terminada a música, terminou a festa. Anticlímax total. Foi uma noite em que pouco dormi; preocupava-me com o que poderia acontecer à Odete. Tinha ouvido os comentários das mulheres de que aquilo fora uma pouca vergonha. Não aceitava a irritação delas contra a pobre moça que tão bem dançava o twist. Era inveja, pensava eu. Nos meus devaneios, Odete era mais do que nunca a soberana para a qual convergiam as mais puras e secretas aspirações da uma alma em êxtase. E então eu descobri, com a certeza mais profunda e desesperada que pode morar no coração de um homem, que precisava aprender a dançar o twist. Esse seria o meu preito, o meu ex-voto, o meu holocausto, o meu louvor, a oferenda que humildemente deporia aos pés daquela deusa, mensageira de um mundo ignorado, instigante e sedutor, que vagamente percebia através e além daquela música e daquela dança. Levantei-me cedo e fiquei de tocaia esperando o momento de poder falar-lhe a sós. A manhã passava célere e nada de Odete. Ouvi vozes alteradas, como se discutissem, vindas da casa do meu tio. Finalmente, Odete apareceu. Saiu para o quintal para limpar um tapete. Não perdi tempo; fui-lhe falar. Notei-lhe os olhos chorosos e, pela primeira vez, não vi o sorriso habitual a iluminar-lhe o rosto. Perguntei-lhe porque chorara. Tudo bem! Eu tinha apenas quatro anos! E, embora contrafeito e decepcionado, compreendi-lhe as razões. Mas, ali mesmo, jurei que quando ela voltasse, dali a um ano, eu já teria crescido o bastante para não lhe aceitar outra desculpa como aquela. Esperei-a em vão. Ela nunca mais voltou. Soube mais tarde que a discussão daquela manhã fora porque a minha tia queria demiti-la, e que ela fosse embora naquele mesmo dia. O marido não concordou. Acertaram, por fim, que seria demitida, alguns dias mais tarde, quando regressassem a Lisboa. E assim aconteceu. Confusamente, percebi o nexo causal que unia a sua demissão à dança do twist e às pernas que despreocupada e generosamente deixara expostas. Fui crescendo e o mundo restrito da aldeia da minha infância foi-se alargando aos poucos e revelando-me alguns dos seus mistérios, até mesmo aquele pelo qual não devem as moças recatadas ficar de pernas à mostra. Viajei e conheci um pouco do mundo. Passei longos anos longe da minha aldeia. Para minha pena, nunca aprendi a dançar o twist e, com o passar do tempo, quase me esqueci de Odete. Hoje, com a velhice a bater-me à porta, volto à aldeia onde tudo começou. O táxi pára no pequeno largo, no lugar preciso onde outrora Odete me apareceu pela primeira vez. Tenho a vaga sensação de que o mundo é um salão de dança, onde rodopiamos ao som de uma orquestra regida por uma batuta desconhecida, como se dançássemos, num imenso ir e vir, um interminável twist. Twist que Odete nenhuma, por mais exímia, pode nos ensinar. Levanto os olhos para a casa que um dia abrigou Odete. Pela janela aberta, flui uma música atemporal que parece unir o presente e o passado. Apuro o ouvido e escuto um refrão em inglês:“Let’s twist again”.
E uma suave voz de menino, quase inaudível na distância, repete-me aos ouvidos cansados: |
Taubaté, 25 de Setembro de 2006. |
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Menção Honrosa do mês de Novembro: |
A mochila do Miguel |
A mochila do Miguel estava sempre desarrumada. Lá dentro, como devem calcular, tinha todo o material que a mãe fora comprar à papelaria do senhor Abel para levar para a escola: lápis de cor, sem cor e canetas de feltro, uma esponja, um bico esquisito, um frasco de cola que se pega aos dedos, uma tesoura sem bicos, papel celofane, vegetal e de cartão, uma borracha, cadernos com linhas, sem linhas e aos quadradinhos, um afia, um livro para ler, outro para escrever, outro ainda para aprender coisas com nomes estranhos. Uff! Tudo na mais terrível desarrumação que se pode imaginar! A mãe estava sempre a chamar-lhe a atenção para a necessidade de limpar e organizar a mochila, mas qual quê! Miguel gostava muito mais de rasgar as folhas do caderno e com elas fazer chapéus, barcos e aviões a jacto. Naquela noite, depois do Miguel adormecer, algo de extraordinário aconteceu. A luz do luar entrava pela janela e batia suavemente na mochila aberta sobre a cama. Começaram a ouvir-se vozes tão fininhas que mais pareciam vozes de duendes ou de anõezinhos. Miguel acordou com o ruído. Olhou para a mochila e o que viu assustou-o: todo o material fugia de dentro da mochila numa grande aflição. - Temos de sair daqui - dizia uma caneta de feltro amarela enquanto saía por uma das fivelas. O Miguel esfregou os olhos. Estaria a sonhar? Não, não era um sonho pois tinha os olhos bem abertos! - Quem s…são vo…vocês…? - Eu sou a Borracha Dançarina – respondeu a borracha, zangada – Mas devia mudar o nome para Borracha Pastosa pois esqueceste-te de fechar o tubo de cola e escorreguei nela, ficando toda peganhenta… Olha bem para o meu aspecto. Já nem posso apagar os riscos que fazes nos cadernos! - Eu sou o Lápis Bicudo! Ou por outra, fui um lápis bicudo pois tu já não me afias o bico há muito tempo – respondeu um dos lápis de cor a chorar. - Eu chamo-me Caneta Perneta… - Vê bem a minha sina. Era uma caneta tão jeitosa com duas cores e tu não descansaste enquanto não partiste a carga vermelha. Agora para aqui ando ao pé-coxinho, por tua causa. - Eu sou o Caderno Sabichão, e só não sou sabichão porque tu nada escreves nas minhas folhas, só as rasgas para fazeres bonecos de papel que depois deixas espalhados no fundo da mochila. - Temos aguentado tudo – tornou a dizer a Borracha Dançarina – mas hoje não aguentamos mais. O que nos fizeste foi terrível! - O que foi que eu fiz? - Não sabes? Procura bem e verás! Na manhã seguinte Miguel acordou com uma sensação esquisita. Correu para a mochila e abriu-a. Apertou o nariz com força. De dentro vinha um cheiro horrível que lhe deu volta ao estômago. Oh! Tinha-se esquecido de deitar para o lixo o resto da sandes de queijo, de há quatro dias! Estava desfeita e cheia de bolor. E então o Miguel, lembrando-se do sonho que tivera, arrumou todo o material convenientemente dentro da mochila. Tudo ficou limpo e arrumado. E a mãe nunca mais ralhou com ele. |
Eugénia Edviges |
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