início | grupo | acções | mala | newsletter | fotos | talentos | entrevistas | recensão | links | blog |
:: voltar :: |
Apenas um livro |
Todas as civilizações se equivalem... Miguel Torga [9.V.1974] |
1. Escrever um livro é acto de cidadania plena. Pode hoje escrever-se livremente um texto e livremente ler, discutir ou ignorar. Embora seja, para as gerações novas, acto banal, é coisa assaz rara, na longa duração da história autóctone: desde que há livros impressos em Portugal (dizemos pátria, por influência dos antigos Gregos, lugar simbólico onde filiamos o comum imaginário linguístico), passados V séculos, diga-se, apenas em pouco mais de 100 anos pôde acontecer aquilo que, com a banalidade aparente das coisas banais, agora acontece. Livros impressos apareceram ao sabor de tipógrafos artífices e encomendas. Raros exemplares do séc. XV existem editados no país, mas não em português, como os célebres incunábulos de LEÃO HEBREU (Dialoghi d´Amore) e ABRAÃO ZACUTO (Almanach perpetuum). Mas quando começava a prosperar a produção mecânica, foi estabelecido com chancela régia o Index das proibições, há, precisamente, 470 anos, e começou a censura institucional, sistemática, à edição de livros. A Contra-Reforma não trazia só a Inquisição exigindo a pureza do corpo, pela morte, mas a purificação das almas pelo expurgo ideológico: é por isso que autos-de-fé e de fogo tanto atingiam a vida de pessoas como a existência de livros. Páginas de cartapácios passaram a ser reconhecidas como inimigos públicos do Estado e da sua religião persecutória e única. A verdadeira vanguarda do pensamento moderno (o caso do Index de Évora recém desvendado), era riscada. Letras eram o alvo a abater. Ter opinião diferente – ou ser mais lido, o que poderia significar, um pouco mais inteligente – era assunto demonológico. Tal acentuou-se com a Razão de Estado que por essa época nascia sob a forma do absolutismo e centralismo régios, suspeitando de tudo e todos. Possuir livraria particular poderia ser perigoso indício de raro exemplar de antropos, pessoa sábia ou culta, ou, na terminologia paranóica da época, judaizante, marrano, cristão-novo (o que dá, pelo negativo, a imagem precisa do nível de iliteracia cultural dos alegados cristãos-velhos nessas Eras). Mesmo modificando o cariz da censura, contra a qual os estrangeirados, como VERNEY ou RIBEIRO SANCHES, vozeavam na emergente (e reprimida) opinião pública, Pombal criou a Real Mesa Censória que, também em nome do Estado da Razão, perseguia e proibia livros e autores – infelizes alvos desta narrativa –, durante séculos únicos e obrigatórios. Acabado o ensino de Conimbrigenses, era ARISTÓTELES apagado, quase por decreto, de bibliotecas e cabeças. Só a partir do Verão de 1820 as velhas moscas desovadas por Pina Manique perderam a asa e a liberdade de imprensa, síntese da liberdade de pensamento e opinião, edição e ensino, começou a dar primeiros passos. Muito difíceis, porque a Censura e a Inquisição foram logo repostas por D. Miguel, o último absolutista, entre 1828 e 1834, e o séquito persecutório fez enormes estragos. Os melhores livros portugueses do período, entre os quais, sem dúvida, Camões de GARRETT, editaram-se pela Europa, em França ou Inglaterra, porque por cá não tinham guarida, nem editor – e muitos dos (poucos) leitores, num esmagador universo de analfabetos, eram exilados. O próprio liberalismo não escapou à persistente tentação censória: os Cabrais, a começar pelo conde de Tomar, editaram famosas leis da rolha ou de censura à imprensa, e foram baixos adversários da liberdade de edição e comunicação – em nome da liberdade de pensamento, o que é caricato. Feitos inimigos, os ímpios que ousavam escrever contra a corrente – entre os quais o grande HERCULANO –, e os livros, ambos se ressentiram da falha de liberdade. (De facto, livre e livro é quase a mesma coisa senão o mesmo: é acto de respiração do humano. Embora haja livros, e muitos, que querem proibir livros e banir a enorme diversidade das gramáticas do humano da face da Terra). Leis da rolha repetiram-se vezes sem conta (até, pontualmente, com Fontes), com Ávila, Hintze e, sobretudo, João Franco, em pleno séc. XX, no final da Monarquia. Folhetos e jornais republicanos eram alvos preferidos, o que não impediu a publicação do célebre Marquês da Bacalhoa que arruinou a reputação dos censores. A República, a despeito de intenções libertadoras e humanistas, consentiu na censura de imprensa e na caça ao livro em tempos da Grande Guerra (assim se chamou porque era impensável que outra viria mais terrífica e devastadora). Eram republicanos os que reprimiam a imprensa, a literatura e o movimento pacifista e operário – o clandestino congresso de Tomar da UON, em 1914, é a prova –, enquanto a opinião realista reorganizava revistas, centros e livros. Após a difícil experiência republicana – que, em nome da nova religião cívica, chegou a proibir, em 1911, a edição de textos da velha religião – foi o que se sabe. Generais impuseram a censura e Salazar, após 1933, a par da Constituição, transformou-a em instrumento cirúrgico de mutilação intelectual dos portugueses, na qual participou muito major na reserva, que rasurava o que não entendia e emendava notícia, em nome do decoro e boas maneiras, do ódio à democracia e à liberdade e doutros dogmas em que cria, a seu bel-prazer. Não contentes com isso, intimavam-se escritores porque escreviam (e prendiam-se intelectuais porque haviam lido!) livros ou artigos, nesse meio século em que a liberdade foi legalmente equiparada a crime ou delito comum. A PIDE, com sua rede de informadores das mais diversas profissões e condições, treinara-se em detectar intelectuais do reviralho, o secular ódio a marranos ganhara novos nomes: democratas, socialistas, comunistas, anarquistas. Procissão vil de denúncias. Vergonha cívica, assim se dirá: professores denunciavam professores, para lhes roubarem Cadeiras (mas apenas lhes sacavam assentos, ordenados, lugares), decretos expulsavam professores por delito de consciência – isto é, por terem consciência, coisa, para a época, anómala e inconstitucional, pelos vistos. Assim por diante. Como se sabe, só a revolução de Abril de 1974 poria termo a esta reedição provincial do velhíssimo Reino da estupidez. A longa duração mental do tempo persecutório, mesquinho, persistiria numa sociedade na qual inveja e intriga se autolegitimaram como metodologia pragmática de mobilidade social desde o séc. XVI (basta ler o Auto da Índia de GIL VICENTE, para se compreender a extensão do problema). Ora, toda a restrição ao pensamento ou à experiência (afirma AGOSTINHO DA SILVA sobre a ditadura), é perigo de morte comunitário. Assim é. Alguns, que no regime repressivo mais se empenharam, após tanta azáfama, iam em nova aventura, cuja matriz repressiva e censória invoca, porém, a sombria fonte e as poluídas águas onde se geraram. |
2. De todas as maneiras de adquirir livros, disse um dia WALTER BENJAMIN, escrevê-los é considerado o método mais meritório. O destino dos livros não pertence a quem os escreve nem a quem os edita. Pertence a quem os lê. Por isso, é registo de bordo de navegação a rumo, diário da existência interior, ditado pelo pensamento e pela emoção. Mas não se sabe se a garrafa do náufrago que contém a mensagem será alguma vez interceptada na praia perdida, apesar da escrita ser a chegada do pensamento à superfície, como intuiu MICHEL FOUCAULT. O conhecimento do sensível e do inteligível cruza-se em todos os livros, interpela hipoteticamente os leitores – tal é o propósito do livro Inequações do tempo verdadeiro, agora lançado pela Contador de Histórias, de Tomar, suscitado pelo exercício dos problemas teóricos que, em plenas aulas da licenciatura, no âmbito de Estética e de Cultura Portuguesa, se equacionam. A partir da Modernidade, nos séculos XVII e XVIII, com ESPINOSA e KANT, emergiu a individuação ou subjectivação ética e gnosiológica e o Mundo deixou de ser, ou não é apenas, conjunto vastíssimo de conhecimentos. Todo o conhecimento radica na capacidade, também ética, da sua interpretação: para além da espessura do real, o Mundo é outrossim a leitura que dele fazemos, cada um de nós a partir da sua individual consciência, da competência cognitiva, da sua perspectiva, do ethos ou do pathos, da ética ou da emoção, que a visão do espectáculo do mundo, no qual participamos como expectantes actores, suscita. Ora, viver não é apenas uma questão da ontologia fundamental de que falava HEIDEGGER (génio civicamente inimputável); é questão quotidiana de Hermenêutica, inacabada, de compreensão muito vasta da amplitude dos problemas que a vida suscita. À interpretação e compreensão da vida, cada um de nós chama “minha vida”, mas isso é um paradoxo do Ego, erro de paralaxe na visão suscitada pela hiper-valorização do eu no contexto da vida. A vida parece-me, na minha particular perspectiva, coisa minha. Mas não: miscelânea de vidas, de atitudes e culturas, é máquina de desejo (DELEUZE) que se alimenta tanto das memórias do passado como de (im)possíveis memórias do futuro, ou da expectativa dele, como afirmam certos autores que designamos utópicos. De facto, balanço entre a herança e a expectativa, como quer P. RICOUER, a vida não repousa em sítio firme, como a solidez da crosta nos sugere, nem se circunscreve numa pré-fixa identidade, mas é movente (J. DERRIDA), coisa múltipla que se move no Tempo expandido, movimento complexo de fluxos e refluxos, geografia nómada de espuma e água. A nossa vida, aquela que cada um de nós designa por minha vida, é um círculo que abarca todas as vidas possíveis, as que ignoramos e as que pensamos conhecer, as que entram pelas janelas da imaterialidade ou pela porta do satélite, as que julgámos desaparecidas, as vidas dos que privam connosco ou nos evitam, as vidas de vizinhos que podem estar a 9.000 km de distância e as daqueles que excluímos e que moram na barraca mesmo ao lado da nossa casa. Estar vivo é estar ligado ao mundo, e essa conexão, connectus, é a essencial inteligência que temos para viver – no claro étimo latino, potencia intellectiva. Mas há nisto de viver diferenças antropológicas fundamentais: uns acham insuportável a vida sem os adereços que colectivamente supomos pertencerem-lhe; esses adereços são cada vez mais complexos, têm símbolos electrónicos, cifras, zeros. Outros, arriscando o presente e a expectativa futura, limitam-se a serem o que são. A pensarem a escrita, a escreverem o que pensam. Aos primeiros, chamou UMBERTO ECO integrados, desculpe-se a hipérbole, mas assemelham-se aos que vão ao mercado romano dos escravos, com a cotação do dia, grilhetas à vista. Aos segundos, ECO chamou intelectuais apocalípticos, porque estão continuamente a preparar-se para um mundo melhor, para si e para os outros – porque têm consciência da sua conexão –, continuamente insatisfeitos em busca de satisfação. Não têm cotação no mercado e tudo, o que lícito for, farão para não terem grilhetas. Vivem de acordo com a sua consciência. |
3. Correspondendo a essa bipartição antropológica há, assim, dois modos fundamentais de cruzar o mar da vida. Um, é fazer o cruzeiro, ir por onde todos vão, ou parecem ir, seguir o carreiro. Chega-se a algum lado, mas nada se percebeu da viagem. Outro, é lutar. Usando remos legitimamente possíveis. É cansativo e, por vezes, correm-se riscos de desânimo e incompreensão. Mas é o único processo de conquistar a liberdade, não como telos, finalidade distante, mas como praxis. Parece um contra-censo: então é preciso conquistar liberdade no momento em que quase todos se crêem livres? Sim, dir-se-á, é preciso conquistar a liberdade porque há ameaças mais fortes do que o lápis de censura. Há mordaças económicas e sociais que excluem uns e incluem outros, sempre foi assim, fatalistas dizem. Há mesmo alguns que são os incluídos, por definição, em todos os tempos e em todos os regimes: naqueles que oprimem e odeiam a liberdade e nos regimes que estimam e libertam a liberdade. Como é possível? É possível quando o lugar vocacionado para o questionamento e inquietude se converte em sítio de podre apaziguamento, e esse local chama-se escola, verdadeira mãe de água do sistema de opinião e conhecimento responsável. Ora, não se pode transformar acriticamente o ensino em súmula de receitas, procedimentos técnicos, fórmulas científicas ou, até, de chavões hipoteticamente filosóficos. Tudo isso está distante dos problemas essenciais do seres humanos. Querem-se técnicos e os técnicos parecem ser, sob o ponto de vista das ideias, coisa amorfa: só por si, não pensam, fazem; não questionam, obedecem. As escolas, por essa via, só conseguem reproduzir, mas não produzir; e o que reproduzem é “massa massificada”, numa palavra, acrítica. Tal redunda em grave incompetência e desqualificação porque a informação crítica não circula - é o oposto da excelência, verdadeiro instrumento qualitativo que regula toda avaliação do complexo sistema de oferta e procura científica e cultural. Não há conhecimento retido em circuito-fechado, sem a circulação de hipóteses e teses expostas no fórum da comunidade cultural e científica. A “teoria” do circuito-fechado é, assim, mais outro absurdo ficcional. Pensa-se que ir por aí é prosseguir no caminho autista do fim da escola. Escolas que livremente vivem a liberdade e o sistema de contradição responsável que lhe é correlato, andam para a frente, multiplicam-se, são interrogativas e produtivas, particularmente num momento em que é inegável repensar toda a rede estruturante do ensino superior, como sistema integrado, para lhe atalhar a oferta completamente desregrada ou, nalguns casos, a inadequada e pouco qualificada formação – como afirmou o reitor da mais prestigiada e qualificada das universidades que falam português (vede o ranking há dias veiculado pelo insuspeito Times). As outras escolas, atulhadas de redes clientelares, padrinhos e afilhados (tantas vezes inqualificados), de interesses mesquinhos, terão dias contados. Não conseguem sobreviver no mercado em que a massa crítica e, portanto, o produto da livre prática do pensamento e da investigação, é a única regra demolidora. É também essa a tentativa do livro que agora se divulga: gesto de liberdade crítica, que tenta colocar um momento de racionalidade – dir-se-ia, de civilização, à maneira de TORGA –, no centro dum problema que, de outro modo, permanece insolúvel. |
Paulo Archer |
Professor no Instituto Politécnico de Tomar, autor de Inequações do tempo verdadeiro (dispersões sobre o efémero), Tomar, O Contador de Histórias, colecção Húmus, n.º 4, 2006. |